Existem filmes que conseguem sucesso, fama e glória somente com o passar do tempo. São lançados ao publico, solenemente ignorados e rejeitados, para resurgirem do nada, pouco a pouco, e serem devidamente reconhecidos, por crítica e publico, como obras que firmaram novo território, quebraram barreiras, lançaram inovações e definiram um caminho na arte cinematográfica que muitos irão seguir no futuro.
Esses filmes são chamados de SLEEPERS. E BLADE RUNNER nasceu um Sleeper.
Poucos viram. No primeiro fim de semana em exibição, passando em mais de 1.290 salas de cinema nos USA, o filme arrecadou um pouco mais de US$6 milhões. Orçado oficialmente em US$28 milhões, o filme foi retirado de cartaz quando se pagou - e isso foi de junho a setembro de 1982. É um Sleeper clássico. O trailer da versão original de 1982 pode ser apreciado em http://www.youtube.com/watch?v=4lW0F1sccqk. Vale também uma visita ao site oficial de BLADE RUNNER na Internet: http://bladerunnerthemovie.warnerbros.com/ .
Para aqueles que estavam morando fora do sistema solar nos ultimos 30 anos (ou em coma profunda), e retornaram a Terra recentemente, BLADE RUNNER é aquele onde Harisson Ford interpretava um detetive depressivo (papel cogitado para Dustin Hoffman) que caçava andróides revoltados com o prazo de validade de suas vidas. O filme jogou à fama Sean Young, Daryl Hannah e Rutger Hauer, este ultimo fazendo sombra ao astro Ford. Para os mais antenados, o filme ainda contou com Joanna Cassidy (a da cobra), Edward James Olmos (sempre praticando origami) e M. Emmet Walsh (chefão da polícia que convoca Ford), todos excelente atores.
BLADE RUNNER, baseado num conto de Phillip K. Dick chamado "Do Androids Dream of Electronic Sheeps", veio na contra-mão. Sua trama era filosófica, falava sobre o futuro da existência humana e o significado da vida, onde andróides (máquinas) valorizavam muito mais suas vidas do que os humanos (o criador) valorizam as suas próprias. Ninguem em 1982 estava muito afim de ir ao cinema para debater essas questões.
A direção de Ridley Scott, considerada um ícone de referência no gênero hoje em dia, empacotou isso tudo em enredo de filme noir clássico: detetive, a contra gosto, investiga cenas diversas, interroga personagens suspeitos, é perseguido, apanha, mata alguem, se apaixona pela belle fatale e, no final, descobre algo sobre si mesmo. Não há nada de novo nessa composição. A grande contribuição de Scott foi o modo como misturou isso tudo numa argamassa consistente e visualmente estranha e atraente. Scott projetou um estilo visonário de contar uma estória ao desenhar um futuro catastrófico que veio a se confirmar mais tarde. Até hoje, BLADE RUNNER empresta seu visual punk cibernético e seu clima soturno ao gênero ficção-científica. Seu estilo visual e sonoro é copiado incansavelmente desde 1982.
Problemas foram vários em 1982. Após um screening do filme nos USA (Denver e Dallas) e na Europa (Londres), sob uma reação fria da platéia, forças estranhas (uau!) entraram em ação e remontaram o corte originalmente idealizado pelo diretor. Temendo fracassar na bilheteria, os produtores cortaram algumas cenas, introduziram a narração em off de Ford e adicionaram o final esverdejante em que Ford e Young fogem por uma porta e saem do outro lado dentro de um carro, dirigindo pelos campos verdes e ensolarados da esperança de um futuro melhor. Meu Deus! Seja lá a droga que estavam usando, deve ter sido da boa e da cara.
Uma derrapada feia dessa remontagem guiada por interesses mercadológicos é que os produtores não concordavam que Deckard seria um replicante e não sabberia - que era um dos grandes trunfos da trama. Ao re-editarem o filme, as forças estranhas estruparam essa idéia do filme e a coisa toda ficou meio sem pé, sem cabeça. Afinal, qual era a dúvida existencialista de Deckard se ele não era um andróide? O desfecho da versão de 1982 é considerado um dos maiores equívocos da história do cinema.
Existiu também o atrito entre Ford e Hauer. O herói e protagonista era Rick Deckard, o detetive de Harrison Ford (galã popular e canastrão egresso do sucesso de STAR WARS). A principio, o vilão era Roy Batty, o andróide líder interpretado por Rutger Hauer (um desconhecido). Advinha? Com o decorrer da história, o espectador começou a se identificar com Batty e acabou por torcer por ele e sua turma no final.
São de Rutger Hauer as melhores falas do filme e, quando aparece em cena, é muito mais ator que Ford. Reza a lenda que Ford exigiu de Scott mais cenas e mais falas para o seu personagem - e menos para Roy Batty. Mas, como Scott já confessou, a chave do enigma estava mesmo com o outro personagem. Seja lá o que houve, é do replicante Batty a mais memóravel fala e cena do filme, conhecida como TEARS in the RAIN. E, por incrível que pareça, a cena foi uma idéia original de Hauer, momentos antes da filmagem, e completamente feita de improviso. Eis a cena: http://www.youtube.com/watch?v=EG2h1VzPN7Y . Viu? Dá para acreditar que isso tudo foi improvisado? Foi.
Definitivamente, BLADE RUNNER estava a frente de seu tempo. Sua proposta vanguardista convidava o publico errado, em hora inapropriada, para a discussão certa. Não funcionou mesmo. Apesar do debate proposto ser válido, seu publico ainda não existia e a hora certamente não era 1982.
Enfim, BLADE RUNNER renasceu em 1992 e foi elevado a categoria de um dos maiores filmes de ficção científica da história do cinema. Essa montagem resgatou a idéia original do roteiro - um debate metafísico sobre o significado da vida - no momento em que platéias estavam antenadas neste tipo de discussão.
Mas, quando algo é pré-destinado para ser perfeito, só descansa quando perfeito se transforma.
Em 2007, para comemorar 25 anos de perseverância e persistência, da vitória da arte sobre a lógica mercadológica de forças estranhas (olha elas ae...), BLADE RUNNER ganhou um lançamento de luxo: BLADE RUNNER The Final Cut (trailer em http://www.youtube.com/watch?v=J_hYs1jBy8Y ). Esta é a montagem em que Ridley Scott trabalhou pessoalmente e obteve controle artístico total sobre o produto final, colocando em prática tudo aquilo que gostaria de ter feito 25 anos atrás.
O sonho de Deckard com o unicornio foi ampliado e é mais detalhista e revelador do grande mistério da trama toda. Quando Batty solta o pombo na famosa cena TEARS in the RAIN, o pombo voa para um céu escuro, quase negro - era azul esperança (?) nas versões anteriores. O final foi mantido na porta mesmo (ufa!), sem os campos verdes, primaveris ao som de Vangelis. Enfim, o filme ganhou agilidade, coerência de narrativa e um clima mais dark ainda, bem punk, completamente sombrio e enigmático - tudo a ver com os dias de hoje.
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